Escrita do argumento a partir da vídeo-instalação, F de Criada, integrada na exposição Estratégias Para Dem(u)rar o Tempo na Casa Museu Marta Ortigão Sampaio.
F de Criada é um trabalho documental sobre Mabilde Rocha que trabalhou na casa de Marta Ortigão Sampaio desde os catorze anos e onde a conhecemos com oitenta e cinco anos. Cuidou sozinha da patroa até ela morrer.
Por testamento a casa foi deixada à Câmara do Porto para ser transformada em hospital de crianças mas com a ressalva de que a criada Mabilde poderia lá viver, num quarto, até quando quisesse.
Quando visitei o lugar com Cristina D’Eça Leal, encontrámos Mabilde a viver sozinha numa casa a precisar de algumas obras estruturais e esvaziada dos objectos que a tornaram icónica para uma classe social abastada. A Câmara do Porto retirou o recheio e os móveis, os quadros, as porcelanas, os tapetes, os cortinados etc. foram substituídos pelos pertences da criada Mabilde, muitos deles comprados em lojas de trezentos chinesas, como os pequenos tapetes rectângulares que pontuavam o chão da espaçosa sala de jantar e onde a beleza clássica da antiga lareira permanece, lembrando outros tempos.
Antigamente os quartos dos criados ficavam nas águas furtadas do terceiro piso mas com a degradação do edifício, Mabilde teve que procurar um quarto no piso dos patrões. Por respeito para com a sua memória, não suportando a ideia de ficar num dos “quartos dos senhores”, transformou a antiga sala de estar, a sala Azul, no seu quarto.
A primeira questão que colocámos foi sobre a habitabilidade real de uma casa museu e o simulacro que representa, conceito que trabalhámos numa exposição anterior, na relação de uma outra criada de nome Elisa com o patrão Anastácio Gonçalves, colecionador de arte (Saldanha, Lisboa). A segunda, e mais perturbadora para nós, foi sobre a escolha de Mabilde (e também de Elisa) em permanecer numa casa onde tinha sido criada. A casa não era sua, nunca se apropriou do quarto principal, nunca comeu na sala de refeições mas na cozinha.
A relegação das mulheres para o espaço doméstico é levado ao extremo no caso das criadas. Elas não se limitam a habitar a casa, elas fundem-se com a própria casa no conhecimento profundo de todas as suas zonas e na garantia do seu pleno funcionamento. Observámos que as casas são atravessadas por duas escadas diferentes: a principal e a de serviço. Às criadas apenas era autorizada a utilização das escadas principais para efeitos da sua limpeza, não para circulação.
“la maison est notre coin du monde”, como disse Gaston Bachelard, e assim foi para Elisa, criada de Anastácio Gonçalves, e para Mabilde, criada de Marta Ortigão Sampaio. Ambas cuidaram desveladamente das casas após a morte dos patrões, até o Estado assumir a responsabilidade das mesmas. Não porque as casas lhes pertencessem mas, pelo contrário, porque elas pertenciam irremediavelmente às casas.
O filme No Place Like propõe uma reflexão a partir de dois universos vivenciais distintos, um que terminou em homicídio e o outro em abnegação, separados por uma linha irregular que parece unir o estatuto de criada.
O homicídio parte do texto de Jean Genet “As Criadas“, uma reflexão sobre o crime cometido pelas irmãs Papin em 1933 que mataram e esquartejaram a patroa e a filha, na cidade francesa de Le Mans. A abnegação pertence a Mabilde, que continua a cuidar da memória e do jazigo dos patrões.
Através da reconstrução de algumas cenas ficionais que exploram a relação das duas irmãs Papin, foi possível abordar o contexto de Mabilde.
Poucas profissões – ou projetos de vida, como é o caso – são mais desqualificadas do que a da criada de servir. O próprio Código Civil, até 1973, determinava que “o serviçal é obrigado a obedecer, a desempenhar com diligência o seu serviço e a vigiar os interesses do patrão.”
Talvez por isso não ficou para a história aquilo que foi o percurso de vida da maioria dessas mulheres: desde a infância retiradas da família, era-lhes inscrito no corpo o desígnio da subserviência e dedicavam-se abnegadamente aos patrões, na saúde e na doença, até serem descartadas. Essas, para além do apagamento forçado em vida, foram posteriormente sujeitas a sucessivos apagamentos históricos por mera desqualificação.
NO PLACE LIKE realização e montagem – Ana Pissarra